Bactérias
podem ajudar pererecas a atrair parceiros
Anfíbios desenvolveram relação simbiótica com os
microorganismos
Descoberta
do papel de microrganismos simbiontes isolados da pele de anfíbios foi feita
por pesquisadores brasileiros e publicada na revista Proceedings of the
National Academy of Sciences. Na imagem, perereca da espécie Boana
prasina fêmea (esq.) e macho cantando – Foto: Andrés Brunetti
Em trabalho de pós-doutorado realizado na Faculdade
de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP, o pesquisador
Andrés Eduardo Brunetti, orientado por Norberto Peporine Lopes, professor
titular da FCFRP, junto a sua equipe de pesquisa, descobriram que o forte odor
exalado por algumas espécies de anfíbios é produzido por bactérias e seria uma
forma de atrair parceiros. Exemplo notável de simbiose, tais bactérias ajudam
na hora do acasalamento. A descoberta desse papel dos microrganismos, isolados
da pele de pererecas, foi publicada na revista Proceedings of the National
Academy of Sciences (PNAS).
A pesquisa contou com apoio do programa
Biota-Fapesp, da USP, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes).
“Nos anuros (sapos, rãs e pererecas) é comum
ver diversas espécies diferentes dividindo um mesmo lago ou brejo. Além disso,
nesses locais existem em média 30 pererecas-macho para cada fêmea de uma mesma
espécie. A dúvida é como as fêmeas fazem para reconhecer os machos da sua
espécie em uma multidão de machos de várias espécies, todos vocalizando ao
mesmo tempo”, disse Brunetti.
“Sabia-se que, nos anuros, a vocalização dos machos
tem a função de atrair fêmeas, e que cada espécie tem um canto característico.
Verificamos que o odor desempenharia função semelhante, servindo de sinal
olfativo que permitiria às fêmeas reconhecerem os machos da espécie”, disse.
Os biólogos desconheciam também que havia diferença
no odor de pererecas machos e fêmeas. Brunetti fez tal constatação ao longo de
sua pesquisa, cujo objetivo primário era entender a composição química dos
componentes voláteis exalados da pele de diversas espécies de pererecas.
Sua hipótese de trabalho sugeria que o cheiro fosse
um sinal químico de advertência que serviria para afastar predadores. Para
verificar a hipótese, Brunetti foi a campo em várias localidades do Estado de
São Paulo e Rio de Janeiro para coletar espécimes da perereca arborícola
cará-cará (Boana prasina).
“É muito difícil coletar fêmeas no campo. No
primeiro momento, só conseguimos coletar machos. Quando observamos indicação de
haver diferença sexual no odor dos bichos, fui a campo novamente com o objetivo
específico de capturar fêmeas para comparação”, disse.
“Durante o meu doutorado no Museu Argentino de
Ciências Naturais, em Buenos Aires, ao investigar os compostos voláteis de duas
outras espécies de sapos, descobri que as secreções eram formadas por uma
mistura de 35 a 42 compostos de nove classes químicas diferentes. Na ocasião,
percebemos que alguns daqueles compostos tinham a assinatura específica de
compostos produzidos por bactérias”, disse Brunetti.
O pesquisador veio ao Brasil para investigar se
existiam bactérias na pele de pererecas arborícolas selecionadas para produzir
o cheiro característico de cada espécie e quais compostos eram produzidos. O
trabalho em laboratório teve duas frentes: a análise dos compostos voláteis
exalados da pele das pererecas e a identificação das bactérias lá existentes.
Por meio de técnicas de cromatografia gasosa e de
espectrometria de massa, Brunetti e colegas puderam conhecer a diversidade dos
componentes voláteis na pele de Boana prasina. Verificaram que a
secreção volátil da pele de machos e fêmeas adultas é uma mistura de 60 a 80
compostos, incluindo álcoois, aldeídos, alcenos, éteres, cetonas, metoxipirazinas,
terpenos e tioéteres.
Os cientistas constataram que os componentes
voláteis da pele das pererecas machos e fêmeas eram exatamente os mesmos. O que
não esperavam era descobrir variação nos níveis dos compostos. A análise
apontou para uma diferença sexual marcante nos níveis dos terpenos, tioéteres e
metoxipirazinas.
“Dos três componentes responsáveis pelas diferenças
entre os sexos, os tioéteres e metoxipirazinas são compostos tipicamente
produzidos por microrganismos”, disse Brunetti.
Para investigar se esse era o caso com a espécie Boana
prasina, os pesquisadores isolaram, cultivaram e identificaram bactérias
associadas à pele das pererecas e analisaram os seus componentes voláteis.
Foram detectados 128 componentes diferentes.
A investigação de cada um dos componentes resultou
na identificação de quatro metoxipirazinas presentes em machos e fêmeas, que
são produzidas por uma única bactéria do gênero Pseudomonas.
Brunetti verificou que, em Boana prasina, as
metoxipirazinas são muito mais abundantes nas fêmeas do que nos machos. Dos
quatro tipos de metoxipirazina detectados, dois possuem níveis de concentração
mais elevados nas fêmeas e dois entre os machos.
“Pererecas exalam um odor marcante. Às vezes, dá
até para reconhecer uma espécie específica a partir do seu cheiro, mas ainda
não se conhecia a função de tal odor. Uma hipótese era que se tratasse de um
cheiro aposemático, ou seja, um sinal químico de advertência que serviria para
afastar predadores, como fazem os cangambás [Mephitis mephitis] entre os
mamíferos, por exemplo”, disse Célio Haddad, professor do Instituto de
Biociências e do Centro de Aquicultura da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), um dos autores do artigo.
De acordo com Haddad, tal hipótese era considerada
pelo fato de muitas espécies de anfíbios, especialmente as venenosas, exibirem
coloração chamativa, que funciona como um alerta visual para afugentar
predadores. “Pensávamos que entre os anuros o odor pudesse desempenhar função
semelhante”, disse.
“A importância e a originalidade do trabalho de
Brunetti é indicar, pela primeira vez, a existência de uma diferença marcante
no odor exalado por pererecas de sexos opostos. Nenhum trabalho com anuros
havia sugerido esse tipo de comportamento. Os resultados sugerem que tal odor
serve para permitir o reconhecimento mútuo entre machos e fêmeas da mesma
espécie, com fins de acasalamento”, disse Haddad.
Relacionamento simbiótico
“O interessante nas bactérias Pseudomonas sp.
é que elas vivem na pele de machos e fêmeas, onde metabolizam os mesmos
compostos voláteis, porém em níveis de concentração que variam de acordo com o
sexo do hospedeiro”, disse Brunetti.
Segundo o pesquisador, os níveis de metoxipirazinas
nas pererecas sugere a existência de um complexo mecanismo de interações
metabólicas, segundo as quais o ambiente na pele de cada sexo seria diferente e
favoreceria a síntese de metoxipirazinas características em machos e fêmeas.
“Estabeleceu-se uma relação simbiótica entre
pererecas e bactérias. Em troca do serviço prestado pelas bactérias, de
diferenciação sexual a partir do odor, as pererecas fornecem um ambiente – a
própria pele – onde as bactérias podem proliferar”, disse.
Brunetti ainda não sabe qual a função, para as
pererecas, da diferença sexual nos níveis de metoxipirazina exalados pelas
bactérias na pele. “Nossa suposição é que a diferenciação de odor sirva para
ajudar os machos de Boana prasina a reconhecerem as fêmeas de sua
espécie em locais onde habitam outras espécies de pererecas”, disse.
“Sabemos que os anuros são animais que empregam de
forma disseminada a comunicação visual (coloração chamativa na pele) para
afastar predadores e a comunicação acústica (vocalização) para atrair as fêmeas
para o acasalamento. Talvez as pererecas Boana prasina estejam
empregando uma forma de comunicação olfativa com a mesma finalidade”, disse.
Tal hipótese, que Brunetti tentará verificar em
futuros estudos, tem grandes repercussões. “Até o momento, só é conhecido outro
anuro [sapos, rãs e pererecas] de Madagáscar que se comunica por meio do
cheiro. Entre os anfíbios, sabemos que isso ocorre entre as salamandras,
parentes distantes dos anuros”, disse Haddad.
“Se as pererecas Boana prasina se valem do
cheiro como forma de comunicação olfativa, quem sabe outras espécies não
estejam fazendo o mesmo, dado que cada espécie tem o seu odor característico. A
descoberta de Brunetti, se confirmada, abre um novo campo de investigação na
herpetologia, que agora passará a estudar a comunicação entre anuros não apenas
pelas vias visual e acústica, mas também pela via olfativa”, disse.
O artigo Symbiotic skin bacteria as a source for
sex-specific scents in frogs (https://doi.org/10.1073/pnas.1806834116), de
Andrés E. Brunetti, Célio F. B. Haddad, Mônica T. Pupo e Norberto P. Lopes,
está publicado no site da PNAS.
Peter Moon / Agência Fapesp
FONTE https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-biologicas/bacterias-podem-ajudar-pererecas-a-atrair-parceiros/